Delúbio Soares (*)
O Estado laico é uma das
conquistas da liberdade do homem e da democracia nas nações. O terror religioso
– que viveu seu auge nos tempos medievais – e a exacerbação danosa de suposta
fé religiosa caminharam juntos, de braços dados, fazendo estragos história
afora.
O respeito dos regimes e estados
constituídos à crença religiosa é pedra-de-toque na vida das pessoas. Vimos, ao
longo dos séculos, as maiores barbaridades e violações sem fim, serem cometidas
em nome de valores caros ao ser humano. Da fogueira da Inquisição à perseguição
aos judeus e às Testemunhas de Jeová pelo III Reich de Hitler, até a
cumplicidade absurda da igreja católica com a ditadura militar genocida na
Argentina, os exemplos se espraiam eloquentes e lamentáveis.
No Equador, faz exatamente um
século, o presidente Elóy Alfaro morreu trucidado por uma multidão, insuflada
pelos hierarcas locais do catolicismo. Porém, no Brasil pós-64 e no Chile de
Pinochet, duas ditaduras implacáveis, o papel de apoio às forças democráticas e
de solidariedade aos perseguidos por parte da maioria absoluta da mesma igreja,
é dado histórico e louvável. O inesquecível Papa João XXIII, com o Concílio
Vaticano II, e o histórico papel assumido pelo catolicismo com a opção
preferencial pelos pobres, nos encontros de Puebla (México) e Medellin
(Colômbia), aproximaram a igreja das bases da sofrida sociedade
latino-americana.
Nas últimas eleições municipais,
ao sabor das paixões e do radicalismo próprio dos pleitos disputados numa
democracia, o tema voltou com força em quase todo o Brasil. Muitos foram os
candidatos que se apresentaram com o apoio de diversas igrejas, das mais
diferentes denominações, na busca do voto popular. E, lamentavelmente, um
debate que não edifica se estabeleceu com igrejas apoiando e igrejas combatendo
vários candidatos às prefeituras municipais.
Foi uma repetição melancólica do
que ocorreu em 2010, quando o candidato direitista José Serra, do PSDB, trouxe
às lides eleitorais questões já então superadas pela sociedade brasileira,
unindo-se aos setores mais reacionários e retrógrados do espectro político e
religioso, tentando tornar a disputa presidencial uma delegacia de costumes e,
ao mesmo tempo, um pastiche de tribunal religioso dos tempos inquisitoriais.
Felizmente, o Brasil civilizado, panteísta, que respeita o credo de cada um dos
seus cidadãos, reagiu ao descalabro e derrotou o candidato das trevas e do
obscurantismo. A preocupação político-institucional das igrejas é fato e deve
ser respeitada. Sem, contudo, já mais se esquecer do caráter laico do
Estado brasileiro. O amadurecimento da sociedade brasileira passa,
necessariamente, pela tolerância religiosa e o respeito absoluto à crença
professada por cada um de nossos cidadãos. E assim tem sido, desde que na
eleição para a Assembléia Constituinte de 1946, na redemocratização pós-Estado
Novo, as arcaicas “ligas eleitorais” religiosas, perderam força e votos até
serem extintas. Na República velha elas foram odiosos instrumentos do mais
improdutivo conservadorismo, oligárquicas e higienistas, funcionando como autênticas
travas à modernização de nossa sociedade e ao progresso. Elegiam parlamentares
que se comprometiam com plataformas obscurantistas, que perderam terreno com a
conquista do voto feminino, com o estabelecimento de leis de garantias ao
trabalhador, com o desenvolvimento de um país que, enfim e com 30 anos de
atraso, entrava no século 20.
O Estado laico é conquista da
democracia e garantia de convivência entre os mais diferentes segmentos sociais
e etnias que formam nossa nacionalidade, dando-lhe força e respeitabilidade.
Aquí, numa terra abençoada e futurosa, árabes e judeus convivem, professam suas
crenças em Mesquitas e Sinagogas e se confraternizam. Nossos irmãos de origem
nipônica representam invejável força de trabalho e de empreendedorismo, num país
em que o budismo plantou profundas e fortes raízes. E assim posso também
recordar a miríade de brasileiros que encontraram no protestantismo, nas
igrejas de confissão pentecostal, a materialização de seus valores espirituais
e, por isso mesmo, merecem respeito e consideração.
Ao mesmo tempo em que condenamos
o uso da questão religiosa na vida política e eleitoral, saudamos a grandeza, a
importância e a modernidade representadas pelo Estado laico em toda sua
plenitude.
(*)
Delúbio Soares é professor